quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A ditadura do varejo

Nelson Blecher, de EXAME

"Não revele meu nome nem minha empresa. Seríamos jogados para fora do mercado. Quem critica a maneira como as grandes redes agem sofre represália. Esteja certo disto: ou vão punir todas as empresas citadas na reportagem, ou pegarão algumas para dar o exemplo. Se você ficar refém das grandes redes, está perdido. A cada negociação de contrato elas vêm com novas exigências de descontos e com taxas que corroem nossa margem. Essas redes nos obrigaram a buscar alternativas. Dobramos nossa força de vendas e atendemos agora 60 000 clientes. Até dois anos atrás, 30% de nossa produção seguia para as prateleiras das grandes redes. Hoje são pouco mais de 20%. O que estamos fazendo é limitar os volumes. Vamos reduzir ainda mais essa dependência. É preciso jogar duro na negociação. Meu diretor de vendas gasta mais de um terço de seu tempo em discussões exaustivas com o pessoal dos supermercados, e nem poderia ser diferente. Acredite: mesmo não aceitando, algumas dessas taxas são lançadas à revelia, nas duplicatas. É uma confusão. São milhares de notas, contas que a tesouraria não tem como conciliar. Também tivemos de separar, no orçamento de marketing, as despesas do ponto-de-venda das de publicidade. Hoje uma posição na ponta de gôndola chega a custar 10 000 reais por mês. Como o ponto-de-venda é um aspirador de dinheiro, acaba sobrando muito pouco para as campanhas publicitárias. As conseqüências de tudo isso são margens achatadas e dificuldade para colocar produtos novos nas prateleiras, para inovar." 

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O depoimento é do presidente de uma empresa do setor de alimentos que fatura na faixa de 2 bilhões de reais por ano. Garantido pelo compromisso do anonimato, o relato do executivo dá uma boa idéia de quão complicadas e conflitivas estão hoje as relações dos grandes varejistas com os fornecedores. Varejo e indústria nunca viveram exatamente uma lua-de-mel, é certo. Trata-se de uma queda-de-braço que se mantém desde sempre. Nos anos de inflação elevada, quem esperneava eram os supermercadistas, compelidos a aceitar sucessivos reajustes nas viradas de tabela. Era pegar ou largar, quer dizer, ou ficar com as prateleiras desabastecidas. A situação começou a se inverter no começo dos anos 90: a abertura da economia e a estabilidade que seguiu ao Plano Real viabilizaram os investimentos estrangeiros no setor de distribuição, dando partida a um amplo, inédito e fulminante processo de fusões e aquisições. Grupos estrangeiros como o português Sonae, o francês Carrefour e o holandês Royal Ahold foram às compras. O Sonae investiu 1 bilhão de dólares, engoliu sete redes e passou a dominar o varejo na região sul do país. O Carrefour, o primeiro a chegar, em 1975, e que até recentemente crescia construindo seus próprios hipermercados, comprou o Eldorado, a Lojas Americanas e um punhado de cadeias regionais. O Royal Ahold desembarcou no Nordeste associado ao Bompreço. Em 1999, o Casino, concorrente francês do Carrefour, adquiriu 25% do capital do Pão de Açúcar, o que deu ao grupo do empresário Abilio Diniz fôlego para absorver mais de uma dezena de redes nos anos seguintes. 

Esse processo tem um nome: concentração. Em 1997, as cinco maiores redes varejistas (Pão de Açúcar, Carrefour, Sonae, Bompreço/Ahold e Sendas) respondiam por 27% das vendas. No ano passado, essa participação chegou a 39%. Essas empresas ganharam escala e musculatura, que se traduzem em maior poder de negociação com os fornecedores. Passaram a impor as regras no relacionamento comercial com mão-de-ferro, de forma ditatorial mesmo. Estabeleceram contratos de longo prazo. Além do preço, da pontualidade na entrega e da qualidade dos produtos, consolidou-se como rotina no mercado exigências de descontos para lançamentos, promoções, vendas em datas especiais, bonificações e contribuições chamadas "enxovais" para inaugurações de lojas. A crescente busca de vantagens por parte dos distribuidores passou a gerar atritos. Primeiro com pequenos e médios fornecedores. "A mudança foi muito rápida, não deu tempo para que nos preparássemos para enfrentar a centralização dos negócios", diz o empresário Celso Gusso, presidente da Associação de Fornecedores de Supermercados (Assosuper). Estabelecida em Curitiba, a instituição foi criada há três anos para tentar neutralizar as pressões dos grandes varejistas. Gusso admite que a entidade não conseguiu reduzir as exigências dos contratos e hoje atua no corpo-a-corpo defensivo. 

Abalados com a política comercial agressiva do Sonae, os fornecedores buscaram apoio na Assembléia Legislativa do Paraná, que instaurou uma CPI para apurar as relações comerciais na cadeia produtiva. Foram encontradas, no curso das investigações, 33 diferentes taxas (sete delas eram comuns) cobradas pelos quatro grandes varejistas -- além do Sonae, Carrefour, Wal-Mart e Extra. Outras CPIs pipocaram em mais sete estados, por causa das queixas de produtores de leite, que também passaram a responsabilizar os varejistas pela queda da remuneração paga pela indústria de laticínios (os produtores alegavam que, para compensar os descontos concedidos às grandes redes, a indústria de laticínios reduziu os preços pagos a eles). "O preço caiu 40% desde maio do ano passado", afirma o empresário Jorge Rubez, presidente da Leite Brasil, a associação nacional dos produtores. "Três quartos dessa redução ficou com o varejo, na forma de taxas." 

Do arrocho não escapam nem mesmo fornecedores especializados em produzir artigos de marca própria para os supermercados. Semanas atrás, a gaúcha Fontana, fabricante de produtos de limpeza e higiene, decidiu romper o fornecimento de sabonetes ao Sonae. Segundo Juliana Fontana, diretora de marketing, tornou-se impossível cumprir exigências cada vez mais rígidas de prazo de entrega e de manutenção de preço. "Eles não aceitam negociar aumentos nem querem saber se a matéria-prima encareceu", diz Juliana. Procurado por EXAME, o Sonae recusou-se a dar entrevista. 

A grande indústria já se habituou à queda-de-braço com o varejo. Um exemplo entre muitos: por causa da divergência em torno de uma tabela com reajuste de preços, centenas de itens da Nestlé foram retirados das gôndolas do Pão de Açúcar em junho do ano passado. Segundo Luiz Antonio Fazzio, ex-diretor executivo do maior grupo varejista do país, o Pão de Açúcar, e recém-contratado para presidir a C&A, os preços corrigidos lhe foram comunicados pelo então presidente da Nestlé, Ricardo Gonçalves. "Expliquei que quando o mercado permitisse adotaríamos a nova tabela", diz Fazzio. "Mas o pessoal da Nestlé respondeu que no dia seguinte já não entregaria a mercadoria." Dos 700 itens da Nestlé, apenas 100 permaneceram nas gôndolas do Pão de Açúcar. Fazzio então convidou a Mococa a fazer promoção de seu leite condensado. O impasse durou dois meses, até que a Nestlé concordou em negociar com a tabela antiga. Na versão do executivo Bernardino Costa, diretor comercial da Nestlé, as gôndolas do Pão de Açúcar, nesse período, foram abastecidas com estoques remanescentes de algumas de suas linhas de produtos. Tempos depois, Ivan Zurita, sucessor de Gonçalves na presidência da Nestlé, teve um encontro com Abilio Diniz. Na ocasião, Zurita fez um discurso sobre a importância para a rede de Diniz de ter uma marca forte como a Nestlé nas gôndolas. "Eu mesmo respondi que antes de discutir isso era preciso saber a que preço meu cliente quer comprar os produtos da Nestl", afirma Fazzio. A um interlocutor, Zurita comentou que não teria como ficar de fora de uma rede como o Pão de Açúcar, um dos principais clientes da Nestlé. 

A tensão anda tão à flor da pele que por vezes os conflitos extrapolam o ambiente fechado dos escritórios. Ao topar com o executivo José Baeta Tomas, presidente do Sonae, num evento social, o empresário gaúcho Carlos Tramontina, presidente da Tramontina, maior fabricante de facas e talheres da América Latina, desandou a queixar-se, para quem quisesse ouvir, do tratamento arrogante que dias antes recebera de um subordinado de Baeta. Colocado numa saia-justa bem na frente de outros convidados, Baeta tentou contornar a discussão. Sugeriu a Tramontina que iniciassem uma nova rodada de negociações. 

A guerra declarada entre varejo e indústria se expressa à perfeição num "manual do comprador", que há algum tempo circula no mercado. Conhecido por dez entre dez vendedores da indústria, o manual tem sua origem atribuída a uma multinacional do setor. Eis algumas pérolas: 

  • Considere o vendedor como nosso inimigo número 1. 
  • Nunca aceite a primeira oferta, deixe o vendedor implorar: isso dá margem a maior barganha. 
  • Não tenha dó do vendedor, jogue o jogo dos maus. 
  • Não hesite em usar argumentos, mesmo que falsos. Por exemplo, o concorrente do vendedor sempre tem melhor oferta e maior giro e prazo.

    "A relação entre as duas partes, varejo e indústria, nunca esteve tão desequilibrada", afirma Luiz Edmundo Klotz, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). "Qualquer discordância transforma o fornecedor num segregado. E 75% de nossas vendas dependem do auto-serviço." Klotz, tempos atrás, vendeu ao sócio sua participação na Liotécnica, fabricante de alimentos desidratados. Hoje atua na entidade como profissional e não precisa temer represálias. "Já dei entrevistas e escrevi dezenas de artigos", afirma Klotz. "Só que me mandaram calar a boca. Tenho de falar a política de meus associados." A Abia acaba de criar um comitê com a missão de estabelecer um diálogo com a Abras, a associação nacional dos supermercados, para discutir seus problemas de relacionamento. "Será a tentativa derradeira", diz um diretor da Abia. E o que pensa o outro lado da trincheira? "Os contratos obedecem à lógica de um mercado mais competitivo", afirma José Humberto Pires de Araújo, presidente da Abras. "Mas concordo que é preciso buscar maior equilíbrio em alguns setores, como o de alimentos, em que o varejo está na ponta mais fortalecida e dá as regras."

    Um fator que confere força aos grandes varejistas é o excesso de oferta. "Como não há ainda no Brasil muitos produtos com altíssima diferenciação, tanto faz ofertar a marca A ou B se a percepção de qualidade for semelhante", diz o economista e consultor Nelson Barrizzelli. Pense nas talibãs com suas marcas baratas que fizeram a festa depois do Plano Real. Ou na Coca-Cola desafiada pelas tubaínas, que fizeram despencar o preço dos refrigerantes. Um indício de que a oferta supera a demanda é a maneira como as negociações se desenrolam. "Os varejistas colocam os fornecedores contra a parede ao longo do mês até que concedam os descontos", diz Barrizzelli. O resultado se repete a cada mês: 60% da produção é entregue entre os dias 20 e 30. O restante, a partir do dia 1o. Essa prática, comum nos tempos de inflação (só que com o sinal trocado: em vez de aumentos, o que está em jogo são descontos), encarece custos logísticos e de armazenagem para os dois lados. "É um círculo vicioso que contraria todas as práticas modernas de reposição contínua", diz Barrizzelli. Ele teme que o clima de beligerância dificulte a implantação do ECR (sigla inglesa para Resposta Eficiente do Consumidor), um conjunto de ferramentas de gestão a quatro mãos, do varejo e da indústria, que possibilita a eliminação de ineficiências na cadeia produtiva. "Ocorre que os processos do ECR só podem ser viabilizados com transparência de informações dos dois lados", diz Barrizzelli.

    Os contratos aos quais os fornecedores são submetidos nada têm de ilegal, de acordo com uma avaliação feita por profissionais da Manhães Moreira, escritório de advocacia empresarial de São Paulo, a pedido de EXAME. "Mas podem ser classificados de leoninos e unilaterais, por não permitirem alteração", afirma a advogada Lúcia Maria Messina, sócia do Manhães Moreira. Ela cita uma cláusula do contrato do Sonae denominada Prêmio Fidelidade. Ali é dito que, como o Sonae representa uma garantia de escoamento de uma parte da produção do fornecedor, este concederá determinado percentual sobre o volume anual de vendas à rede. "Bem, a fidelidade deve ser do fornecedor, mas o prêmio fica com o Sonae", ironiza Lúcia. A despeito das críticas, os executivos do varejo não encontram dificuldade para justificar cada item cobrado. Um enxoval (mercadorias que o fornecedor dá gratuitamente para abastecer uma nova loja) é justificado pela necessidade de compartilhar custos elevados na compra de equipamentos (refrigeradores e displays) e na divulgação da nova loja. "Erguer um supermercado com área de 1 500 metros custa de 4 milhões a 6 milhões de reais", diz José Roberto Tambasco, diretor da Divisão de Supermercados do Pão de Açúcar. "E depois de aberto o novo ponto precisa manter preços baixos para atrair a clientela." Cobrar pela ponta de gôndola -- posição privilegiada nas prateleiras que estimula as compras por impulso -- também faz parte da normalidade, segundo o pessoal do varejo. "Como 70% das decisões de compra ocorrem dentro do supermercado, é natural que ao dar destaque para um produto cobremos do fornecedor", afirma Tambasco.

    No Brasil e no mundo, a relação entre varejo e fornecedores é marcada por atritos (veja a reportagem Eu Tenho a Força, na pág. 53). O que há de novo na crise atual é a reação da indústria ao status quo, traduzida na resistência à renovação dos contratos anuais. "Os fornecedores chegaram à conclusão de que ou peitam o varejo agora ou estão ferrados", afirma Francis Liu, vice-presidente da consultoria Booz-Allen. "O que está havendo é uma brutal transferência de valor econômico da indústria para o varejo." Para ele, a situação chegou a um ponto-limite. O fato é que só recentemente as grandes companhias começaram a fazer cálculos na ponta do lápis para avaliar em que grau sua margem está sendo corroída. "É uma conta complicada porque os custos se espalham por toda a empresa", diz Liu. Quase todos os fornecedores descobriram que a margem era diminuta. De cada 1 000 reais de faturamento, de 150 a 200 reais ficam com o ponto-de-venda.

    O cálculo foi feito por Liu para a subsidiária de uma multinacional do ramo de alimentos com faturamento anual na faixa de 400 milhões de reais. Do total de suas vendas, 23% vão para dez grandes varejistas, entre eles Pão de Açúcar, Carrefour, Bompreço e Sonae. O restante está dividido entre vendas diretas (19%), distribuidores (55%) e representantes. A radiografia mostrou que sua rentabilidade no grande varejo era negativa em 8%, ante 16% no representante comercial e 12% na venda direta. Ou seja: vender para as grandes redes é prejuízo na veia.

    Com tudo isso, as indústrias estão se tornando vulneráveis em aspectos fundamentais de seu negócio. Um estudo recente da consultoria americana PricewaterhouseCoopers (PWC) alerta que os fabricantes de bens de consumo estão correndo o risco de se tornar "comoditizados" em poucos anos. Ou seja, suas marcas empalidecerão aos olhos dos consumidores diante das dos varejistas. De acordo com a publicação americana Advertising Age, os anúncios de produtos de consumo representavam 45% dos investimentos de mídia nos anos 80. Hoje, menos de 20%. Não é de estranhar que, das 74 marcas presentes nas listas das 100 maiores do mundo nos últimos dois anos, segundo avaliação da consultoria britânica Interbrands, 41 perderam em média 5% de seu valor. Mais: apenas a Coca-Cola se manteve no grupo das dez primeiras.

    Hoje, de cada 100 dólares do orçamento de marketing das indústrias de bens de consumo, 61 vão para os supermercados, conforme revela o relatório da consultoria. São despesas que já correspondem em média a 16% das vendas brutas de cada indústria. Sobra pouco dinheiro para o trabalho de construção de marca. E qual o resultado desses esforços no ponto-de-venda? Eis aí uma conclusão dilbertiana: oito de cada dez empresas são incapazes de avaliar o retorno. "As campanhas cooperadas são fortemente controladas pelos varejistas", diz o pesquisador americano Kevin Keller, um estudioso no campo das marcas. "Sua ênfase pode recair na promoção, o que embaça aspectos de qualidade do produto". Segundo Keller, a percepção positiva ou negativa a respeito de uma marca passa a depender da loja onde ela está sendo comercializada.

    No Brasil, a queda do investimento publicitário tornou-se mais dramática a partir de 1997 -- não por coincidência, o período em que teve início o processo de concentração do varejo. Um levantamento da agência Talent mostrou que 16 entre 19 categorias de produtos industrializados diminuíram seus investimentos publicitários. Apenas leite e derivados, tratamento para a pele e vestuário ampliaram seus esforços na mídia nesse período. Houve, no conjunto, uma redução de 45% dos investimentos publicitários. O pessoal da Talent entrevistou em seguida 30 executivos de marketing. O que a agência descobriu? A maioria deles, pressionada por resultados de curto prazo, prefere fazer ações de curto prazo e empresta menor importância à construção da marca. Diante disso, o publicitário Júlio Ribeiro, presidente da Talent, chegou a comparar as marcas no Brasil aos lemingues do círculo polar, a única espécie animal que, de tempos em tempos, comete suicídio coletivo projetando-se num precipício. "Empresas que deixam de investir em propaganda e comunicação estão conscientemente provocando a morte de suas marcas", afirmou Ribeiro na apresentação da pesquisa. "No longo prazo, possivelmente, a morte da própria empresa."

    Parte considerável das verbas foi deslocada para o ponto-de-venda na forma de promoções, propaganda cooperada e merchandising. Até mesmo a Unilever, a maior anunciante do país, destina crescentes parcelas às atividades em supermercados, como promoções, compras de gôndolas e displays. Foram 156 milhões de reais no ano passado -- pouco abaixo dos 180 milhões de reais que aplicou em comerciais de TV e anúncios impressos. Seu braço de alimentos, a Bestfoods, já investe 70% de sua verba no trade. Reduziu a de publicidade. "É perigoso porque não cria brand equity", reconhece Dantes Hurtado Júnior, presidente da Unilever Bestfoods, ao se referir à blindagem que toda marca deve perseguir para realçar a percepção de qualidade. Mundialmente, a corporação anglo-holandesa conduz um programa que enxugará de 1 600 para 600 o número de suas marcas. Herança de uma era de crescimento por aquisições, a proliferação de marcas acabou por se tornar um problemão com o fortalecimento do canal de distribuição.

    Empresas como a Unilever já constataram que não é mais a indústria quem fixa os preços dos produtos, como acontecia até um passado recente. Eles são agora estabelecidos pelo varejo com base, principalmente, numa ampla coleta de preços. No Pão de Açúcar, a tarefa cabe à economista Monica Hage, à frente de uma equipe de 22 pesquisadores. A cada semana, cerca de 6 000 itens são pesquisados em 150 lojas da concorrência. Dessas, 50 pertencem a redes médias e pequenas. Existe um acordo de cavalheiros entre o Pão de Açúcar e o Carrefour para que seus pesquisadores possam ter acesso às lojas um do outro, munidos de crachás. "De janeiro a maio observamos uma queda de 5% nos preços", diz Monica.

    O comportamento dos preços no varejo, por sinal, tem sido um instrumento de defesa do varejo em sua disputa com a indústria. Segundo esse raciocínio, a intransigência das redes diante dos aumentos pretendidos pelos fornecedores foi uma das âncoras do programa de estabilização, principalmente por ocasião da desvalorização do real, no começo de 1999. "Quem ainda duvida que o varejo é um dos principais fiadores do Real, que compare os índices de preços no atacado com o índice de preços de varejo da Fipe", diz o consultor Barrizzelli. Segundo ele, entre janeiro de 1998 e abril de 2002, o IPA, que reflete preços pedidos pelos fabricantes, subiu 64%. Na ponta do varejo, apenas 9%.

    Para Barrizzelli, a grande indústria está agora pagando a conta da concentração varejista que ajudou a viabilizar. Compelidas a cortar custos desde meados dos anos 80, as empresas de bens de consumo terceirizaram as vendas de milhares de clientes para atacadistas e distribuidores. A maioria restringiu-se a negociar diretamente com os grandes do varejo. "O paradigma era: mais volume significa menos custo e melhor lucratividade", diz Barrizzelli. "O que a indústria não esperava era que as negociações fossem endurecer tanto. Quanto mais forte se torna um canal, mais perdas terá o fornecedor." Diante disso, tornou-se muito mais vantajoso para a indústria operar com as redes médias no lugar das grandes. Até porque pesquisas divulgadas pelo instituto ACNielsen sinalizam mudanças do comportamento do consumidor nessa direção. Nos últimos três anos, a participação do pequeno varejo e dos supermercados de vizinhança (lojas com dez a 19 caixas, a maioria delas controladas por redes independentes) avançou de 55,5% para 58,1% no faturamento do setor.

    Essas mudanças estão sendo acompanhadas pela indústria. Atualmente não há grande fabricante que não esteja armando estratégias para cativar os clientes de menor porte. Algumas empresas, como a Johnson & Johnson, estão avançadas nesse processo. O que fez a J&J? "Deixamos de tratar as vendas por categoria de produto e passamos a focar no perfil do cliente e nas suas diferenças", diz José Justino, presidente da divisão de produtos de consumo da J&J. Até 2000, a empresa concentrava boa parte de seus negócios na venda direta. Os grandes varejistas eram responsáveis por 89% das vendas. Hoje é o canal indireto, formado por distribuidores exclusivos e varejistas regionais, que predomina, com 58% das vendas. A reestruturação comercial da J&J foi promovida por meio de um projeto batizado de Nova Era, que consumiu 1 milhão de dólares em investimentos. Resultado: o faturamento da divisão de consumo cresceu 11% e atingiu 1 bilhão de reais no ano passado.

    A fuga da dependência excessiva das grandes redes estava por trás da decisão da americana Bestfoods, dona da Refinações de Milho, Brasil, de pagar 752 milhões de dólares pelo controle da Arisco no primeiro trimestre de 2000. Na época, os negociadores da empresa se surpreenderam com a participação da Arisco nas prateleiras de caldo, maionese e ketchup -- bem superiores ao contabilizado nas pesquisas da Nielsen. O segredo da Arisco era seu pulverizado canal de vendas diretas, representado por 12 000 clientes, responsável por 75% dos negócios.

    A experiência da Arisco fez escola: a Unilever, que depois absorveu a Bestfoods, decidiu apostar no atendimento direto em 8 000 pontos-de-venda. Cerca de 600 vendedores equipados com palmtop serão responsáveis pela tarefa. Isso possibilitará melhor distribuição das vendas e, no médio prazo, a redução pela metade da dependência do grande varejo, que responde atualmente por 20% de suas vendas. A exemplo da Unilever, a Nestlé também aposta na ampliação de seus canais de venda. Em apenas um ano, o grupo suíço reforçou em 30% sua força de vendas e ampliou de 5 500 para 8 000 o número de pontos atendidos diretamente. "As lojas de vizinhança ganharam importância", diz Bernardino Costa, diretor comercial da Nestlé. "Sua participação em nossas vendas aumentou de 35% para 40%." 
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